++
Muitos médicos mais jovens podem ficar com impressões infundadas sobre a história da psiquiatria: que esta começou para valer com a publicação da 3ª edição do Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM-III), em 1980,1 que tudo que aconteceu antes seria parte de uma pré-história de interesse muito restrito, ou que os inibidores seletivos da recaptação de serotonina (ISRSs) e os antipsicóticos atípicos estiveram disponíveis desde sempre. Mas, se o que William Faulkner escreveu para o terceiro ato de Requiem for a nun, “[…] O passado nunca está morto. Ele sequer é passado […]”, for verdade, vale sempre a pena rever a história e procurar no seu entendimento as raízes dos fatos atuais, e, por que não, das tendências futuras.2
++
Uma breve história da psiquiatria deve aspirar a brevidade e concisão. Isso nem sempre é possível. Os relatos que compõem a história da psiquiatria não estão organizados linearmente e tendem a ser dominados por uns poucos personagens proeminentes. O destaque no relato não deve ser confundido com a questão da primazia. Não se trata de identificar quem “descobriu” a esquizofrenia ou o transtorno bipolar (TB). Os autores citados neste capítulo representam, em nossa proposta, marcos históricos maiores, que influenciaram significativamente o desenvolvimento do conhecimento e da atuação psiquiátrica. Sua proeminência pode ter sido reforçada, por exemplo, por estarem atuando em centros mais avançados e com maior acesso à publicação, como a França e a Alemanha do século XIX e início do século XX. Pesquisadores brilhantes em centros menores podem ter sido – e muitos de fato foram – relegados a um esquecimento injusto. Relatos históricos distintos poderiam ter sido escritos se tivéssemos dado um peso diferente à atuação notável de vários autores que nem sequer mencionamos. Seja como for, saber situar os nomes e conhecer as ideias de alguns dos principais autores/atores da saga psiquiátrica, mesmo que esta seja apresentada de forma abreviada, só pode contribuir para tornar os bons psiquiatras melhores ainda.
+++
MODELOS MÉDICO-FILOSÓFICOS DOS TRANSTORNOS MENTAIS
++
Há um consenso entre os historiadores da medicina de que o primeiro modelo médico a se constituir foi o hipocrático, na Grécia do século V A.E.C. A novidade trazida por esse modelo consistiu na naturalização da doença, não mais concebida como o resultado da ação mágica de deuses e demônios. Esse entendimento está inserido em um contexto filosófico mais amplo de certas correntes do pensamento pré-socrático. Esses pensadores rejeitaram a concepção divina do Universo em favor de uma concepção naturalista: o cosmo era sujeito a leis que regiam seu funcionamento, as quais não davam margem à intervenção caprichosa dos deuses e podiam ser conhecidas por meio da razão humana.
++
Para a escola hipocrática, o homem era um microcosmo, regido por leis físicas semelhantes às do universo, do macrocosmo. Assim, por exemplo, existiriam no Universo, quatro elementos fundamentais: ar, água, terra e fogo. Segundo Empédocles, a ...